Hospital de Campinas muda vidas ao aliar tratamento à horta e reciclagem

Referência em saúde mental, Cândido Ferreira mantém oficinas para pacientes

Referência em tratamento para a saúde mental, o Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira, de Campinas, também é um polo de sustentabilidade por aliar reciclagem e agricultura ao tratamento psiquiátrico dos pacientes. As iniciativas acompanham a história do hospital desde o início dos anos 1990, sendo consolidadas agora com uma ampla rede de oficinas, com 250 pacientes assistidos. As oficinas incluem a reciclagem de bitucas de cigarro, papéis, fibras de bananeira, além da produção de 350 quilos de alimentos na horta orgânica por dia, certificada e considerada a maior horta urbana do município.

O hospital está localizado em uma ampla fazenda no Distrito de Sousas. Ali são atendidas pessoas com transtornos mentais ou dependência química desde 1924. Na década de1990, esse serviço foi humanizado, deixando para trás os antigos métodos de confinamento, eletrochoque e camisa de força. Foi criada a reabilitação psicossocial como uma nova forma de enxergar o tratamento para pessoas com transtornos. Quem impulsionou esse movimento foi a missionária Cornelia Vlieg, que deu nome à associação que hoje conduz os trabalhos no hospital.

A primeira iniciativa dentro desse novo modelo foi a criação de uma robusta horta, capaz de assistir o restaurante do hospital e também produzir alimentos que pudessem ser vendidos à comunidade de Sousas. Para isso, foi solicitado o uso de um terreno vizinho à fazenda onde o hospital está instalado. Na contrapartida ao uso da área, alimentos produzidos ali seriam dados à dona do espaço.

Hoje, a horta ocupa 11,5 hectares e possui uma vasta gama de verduras, legumes e frutas. Tudo é cuidado por pacientes, que recebem um valor por trabalharem nela. Os alimentos dali são certificados como orgânicos e abastecem o hospital, o restaurante que funciona na unidade, 14 Centros de Atenção Psicossocial (Caps), 20 residências, além de serem vendidos para toda a cidade por meio de cestas e numa loja física instalada nas imediações do hospital. Só na loja, é necessário fazer reposição dos produtos a cada uma hora e meia devido à demanda. Pela agricultura orgânica respeitar o ciclo da terra, não são todos os dias que há os mesmos alimentos. Eles dependem da sazonalidade para serem produzidos.

Do que é usado no hospital, tudo retorna à terra depois por meio do adubo criado nas composteiras, fechando um ciclo sustentável de produção e cuidado com o planeta.

“Mas a sustentabilidade está em muitas frentes aqui no Cândido Ferreira”, explica Carlos Barbosa, diretor da Associação Cornelia Vlieg. “São 12 oficinas, todas usadas de forma terapêutica, mas que dão uma nova destinação a materiais que seriam descartados e ainda garantem renda aos oficineiros que trabalham nela.”

Papel reciclado 

Uma dessas oficinas é a de reciclagem de papel – criada em 1991, foi a segunda instituída no hospital nessa frente. Os pacientes que atuam nela não só reciclam os materiais descartados, mas os transformam em artigos de decoração e ecojoias.

A coordenadora da oficina de papel, Kátia Liane Rodrigues, detalha que esse trabalho utiliza como matéria-prima as fibras de banana – retiradas do caule das bananeiras plantadas na horta do Cândido –, papel e massa celulósica. Esta última é composta por bituca de cigarro e chega até as oficinas do Cândido por meio de parceria com a empresa Poiato Recicla, de Brasília. A empresa é detentora da patente de uma tecnologia desenvolvida pela Universidade de Brasília (UnB) e que tem representação em todo o Brasil.

O Hospital Cândido Ferreira foi o primeiro parceiro da empresa com foco na inclusão social e geração de renda. Para a bituca chegar até o formato de massa celulósica, ela passa por um processo, ainda em Brasília, de retirada de toxinas. Depois disso, é convertida numa massa, que fica com formato de rocha, e enviada para a oficina. Uma vez em Campinas, ela é desidratada nas oficinas e passa pelo mesmo processo que o papel reciclado e a fibra de banana para se transformar em papel.

Um dos oficineiros, Sebastião de Brito, que é paciente e trabalha na reciclagem desse materiais, mostrou como isso funciona. O material bruto, já hidratado, é levado para um compartimento retangular, com água, que fica na parte externa da oficina. Ali, Brito pegou uma tela peneirada com pequenos furos e a colocou dentro desse compartimento. Ele submergiu a tela até que a água com o material hidratado a cobrisse, sacudiu e depois retirou. “Feito esse processo, colocamos as telas para secar em varais. Quando estiverem secas, trazemos novamente para esta área, onde retiramos o papel”, descreveu.

Em uma prateleira, nos fundos da sala onde a oficina ocorre, estão separadas todas as folhas por tipo de material de origem e também por cor. Uma vez que as folhas estejam prontas, elas vão para as mãos dos oficineiros que as transformam em objetos de decoração, que depois são vendidos. Há ainda uma parceria com uma designer para a produção de ecojoias.

“A designer nos apresenta a ideia e nós prototipamos”, explica Katia. “A primeira ideia foi trabalhar com o miolo do papel higiênico. Ela disse que queria criar uma joia a partir disso. Com muita técnica, hoje já temos uma grande linha com esses acessórios”.

As pulseiras e colares consistem em uma grande quantidade de miolos de papel higiênico cortados e reunidos por uma linha, que dá o formato ao produto. As cores para as joias também foram desenvolvidas pelos oficineiros a partir de técnica própria.

Transformação

Mais do que a sustentabilidade gerada por transformar o lixo em produtos úteis, a produção contempla a saúde mental dos pacientes, que contam com atenção humanizada enquanto são oficineiros.

“Eles têm como parte do projeto de tratamento na rede de saúde mental a inclusão social pelo trabalho. Então, na oficina é entendido como parte do processo de reabilitação e inclusão pelo trabalho. Cada um que chega aqui traz na sua história de vida alguma experiência de trabalho, e aqui ele pode retomar esses hábitos, como ter horário para chegar, horário para sair, horário regular para as refeições e aprender um ofício. Essa regularidade ajuda muito na reorganização psíquica, na retomada de alguns hábitos, na regularização do horário de sono. Então, esse trabalho tem essa função: organizar a vida ocupacional das pessoas”, explica Katia.

Um pouco tímida, Celeste da Cruz, de 50 anos, e que está há seis anos na oficina, disse que o trabalho ali a fez nascer de novo.

“Eu trabalhava como faxineira de segunda a sábado. Perdi todos os meus trabalhos devido a um remédio controlado. Estava começando a me dar crise de epilepsia e eu ficava só no quarto, amontoada, chorando, apavorada e sem saber o que fazer da minha vida. Me trato num hospital há 16 anos e de lá me encaminharam para cá. E é daqui que tiro minha água, minha luz e meu gás. Antes, eu tomava 15 comprimidos, agora estou em sete. Então, foi diminuindo. Aqui eu nasci de novo”, disse Cesleste, com olhos altivos, enquanto mostrava o trabalho que desenvolve e que, além de mudar o planeta, muda a vida de quem participa dele.

Fonte: Isadora Stentzler/ isadora.stentzler@rac.com.br | https://correio.rac.com.br/campinasermc/hospital-de-campinas-muda-vidas-ao-aliar-tratamento-a-horta-e-reciclagem-1.1292068